sábado, 21 de junho de 2008





200 anos da Costa-Nova
(fascículo23)


13- AS GENTES QUE DERAM A IMAGEM À COSTA-NOVA

Julgamos ter ficado perfeitamente sublinhado que se foi a pequena burguesia de cada época que deu estatuto à Costa-Nova, e transferiu a sua imagem para o exterior situando-a no mapa do litoral, apontando-a como um dos pontos em que a natureza se deteve, pródiga e lassa, a derramar torrentes de luz sobre uma ria encaixilhada por uma orla de jardins verdejantes[1], foi, contudo, o pescador da borda do mar, quem lhe deu o retrato.



Grupo na beira-mar (Séc.XX)


13.1- O Lanço na Xávega

Era um espectáculo que atraía multidões, postadas ou alapadas no areal a ver os preparativos, a observar, curiosas, as decisões tomadas pelos Arrais a olharem perscrutadores, o mar, tentando decifrar os seus arremessos e enleios. E que depois, atónitas e espavoridas, e até incrédulas, observavam os empinanços do meia-lua a romper a vaga por entre um coro de gritos e imprecações, vozearias e esgares das mulheres especadas, hirtas, erguendo braços e face ao protector, a clamar piedade ao Divino, até o mar deixar de zangalhar o barquito que lá ia longe deitar as redes, à sorte.






«O Barco da Xávega»

Deslumbrante no seu todo, o lanço da Xávega. Começava com intenso movimento, uma espantável e louca azáfama enrolada no turbilhão dos gritos e imprecações das gentes. E continuada com o portentoso clímax da entrada no mar do meia-lua. Viviam-se momentos de ânsia partilhada, aquando do «estripar» do saco permitindo ver o inebriante espectáculo do peixe em «faiscante» estertor; e tinha momento de ingénua gratificação para os mais novitos, com a «recompensa» de poderem encher o «baldito de lata da praia», com um ou outro lacrau subtraído à rede. Para os graúdos ficava a abundância do pilado fêmea, com que enchiam os nassos para à noite se empanturrarem com o saboroso pitéu.




Retocando a malha da rede







Carregando a rede

Mas tentemos a descrição do «Lanço na Xávega», ainda que sabendo ficarmos longe de o retratar com rigor por carência de fôlego e arte, para dele dar a grandeza impressiva do estendal das emoções que perpassam ao longo do seu desenrolar.
À ordem do Arrais, embarcadas as últimas voltas das «calas», trazidas em rolos nos varapaus pelos ajudantes da Companha, desfilava a rede em «estranha procissão», carreada aos ombros por toda a tripulação






Procissão ombreando a rede

Entra primeiro a manga, depois o saco e, finalmente, segue-se a manga de retorno. É chegada a hora do meia-lua, com todo o aparelho a bordo se fazer à pancada do mar;






Bois e homens na água


para isso é puxado pelos bois para a sua beirada, deslizando obre tarolos que vão sendo sucessivamente apostos na sua proa. Chegado mais perto da rebentação, os homens de terra metem-se pelo mar até aos joelhos e colocam a embarcação já muito perto do farfalho da maré. O Arrais - que não tira o olhar do mar esquadrinhando todo o seu movimento -, espera pelo período das «três vagas sucessivas», a que se seguirá um espraiado. Passada a última vaga, ouve-se o grito: é agora… é agora!…

A Companha em terra dá então o último empurrão com a muleta (vara com aguilhão) que enfia na bica da ré - ou à mão utilizando as bossas da embarcação - num esforço hercúleo para desenvencilhar o meia-lua da areia, e, desse modo, o colocar a flutuar. Com o cabo da fateixa enfiado nos golfiões, evita-se a atravessadela fatal. Eis que a primeira vaga vem beijar a embarcação enquanto se grita num esgar de vozes roufenhas: agora… agora !!!
e lá vai o meia-lua, mar adentro …


O meia lua a romper

até se sentir que o barco já abóia. Os remos entram então na água,tentando em luta desesperada chegar o mais rápido possível à segunda vaga. O Arrais, que não larga o reçoeiro já que este lhe serve de controlo para o correcto posicionamento do barco, de frente para a vaga, ordena, invectivando: - temos maré… força… força… seus calões… desse jeito «aguilhoando» o amor-próprio dos remadores e camboeiros. Por vezes o barco parte lesto demais; é preciso travá-lo; cia… cia, ordena o Arrais, para que desse modo, «borregando», se espere pela vaga. Trilha!… trilha!! grita então, dando a ordem para fixar o remo, e assim se amainar o impulso.
E eis que a montanha de água se abate com fragor na proa recurvada, altiva e desafiadora (!) do meia-lua, que se «encabrita» até às alturas num ângulo medonho que chega a superar, por vezes, os 50/60 graus, ficando apenas apoitado de ré. O farfalho da vaga despedaçada pelo encontrão com a proa que a rasga, faz a água galgar e cobrir a embarcação, «esparralhando-se» por sobre os homens que não param de remar, pés retesados nas recoveiras, em derradeiro sopetão para fugir da quebra do mar. O Arrais de barrete em punho grita: rema, rema… estamos safos. E o meia-lua, lesto, atrevido, toma o rumo do poente, lá para o largo, deixando atrás de si o reçoeiro que ficará «preso», entregue aos camaradas de terra.

Passada a pancada do mar - o ponto crítico de toda a manobra – onde se não percebe se é mais de enaltecer os bravos, se espantar com o seu demente atrevimento, ou respeitar e admirar a intolerância da natureza agreste. Vencida aquela, o barco navega então em águas calmas, avançando compassadamente, parecendo espairecer do esfalfe da luta tremenda, desarcada, hercúlea; e lá vai, empurrado pela força dos remos até ao calamento, momento em que, findo o cambo do reçoeiro depois de largado o saco, é tempo de «abicar» à praia. Não sem que antes se responda ao Pai Nosso reclamado pelo Arrais, que, cabeça descoberta, em acto de fervorosa prece, roga a intercepção do «Altíssimo» para que lhes conceda uma «boa pescaria», no que é imitado por toda a Companha.
Posta (toda) a rede na água ao correr do mar, está na hora de arribar. O calador (espécie de segundo do Arrais, e seu prometido sucessor) vai largando o «cabo de mão da barca» até se chegar à praia. A manobra de aproximação é muito delicada, exigindo toda a atenção e destreza do Arrais, olhos permanentemente postos nas vagas que lá vêm. Se o mar é de lama, o Arrais ordena o volteio, e a embarcação vem nessa posição - de ré - varar (achapar-se) à praia, ficando de novo voltada para o mar, pronta para nova sortida. Se o mar está de «vagalhoça», o Arrais não arrisca; ferra «a volta na ré» e, de pulso firme, vai folgando ou retesando o cabo, conduzindo habilmente a manobra, «guiando o meia-lua» até encontrar a «folga da vaga» que permita varar de queixos, entrando pela praia dentro.

Meia-lua aterrando




A tripulação, lesta, salta para a areia, esfusiante de alegria; as parelhas de bois com o chicote solto - o trambelho - «chegam-se» para permitir enlaçar as guias, e assim, «alar» a embarcação, puxando-a para cima sobre os rolos. Para que depois de volteado - aproado ao mar - «descanse» bem lá no cimo da duna. Onde a maré não tem «esfolfe» para lhe chegar.


Varando o «meia lua»

Começa o «ala arriba» da rede. Que demora um par de horas: - duas a quatro, conforme a distância a que se largou a rede. As várias juntas de bois fortemente aguilhoadas e impiedosamente batidas nos lombos com as varas de tocar, são, pela laçada do chicote, «atadas» aos cabos do reçoeiro e da mão da barca, que, inicialmente separados por umas boas centenas metros, pouco a pouco, se vão «achegando», até que à vista dos primeiros «pipos»[5- as calimas -
As calimas ou pipos

(que indicam a posição das mangas da rede), não distam mais do que uns cinquenta metros entre si. Os animais - uma boa dúzia de juntas -, libertos no cimo da duna são largados em louca correria, em tumultuosa balbúrdia, passando possantes por entre paisanos e «olheiros» que, de repente, se dão conta de estarem na linha de corrida de uma parelha: é tempo de correr para escapar, lestos, aos «cornigeros» animais. Os tocadores incitam-nos em gritaria alarve, fustigando-lhes os costados dum modo violento. «foge... foge... arreda!...», é o grito que se vai ouvindo no meio daquela confusão extrema.
Esforço supremo!..Ó!..Ó!.., arriba …riba …riba …vá .. vááá!. grita o Arrais já rouco de tanto rojar…Eh!.. raios... diabos!... puxa... puxa, vá riba !
E os bois e homens, buscando as últimas migalhas de forças conseguem tirar a sacada do mar que lá aparece, qual ventre de enorme baleia agitada por convulsivo tremor.


Ajeitando as mangas

Eis que o saco (a coada) sobe na areia; todos vão por detrás dele, pés na água da arrebentação, dar-lhe uma espreitadela para avaliar da dimensão da sacada.






A coada arriba à praia

Raramente o pescador se satisfaz, pois que espera - sempre !... - melhor sorte.
É apenas um momento de ansiedade, tempo para um simples esgar e para rogar a praga do seu desencanto, porque logo esquece a estiporada sorte para de novo se envolver na árdua tarefa de levar a rede acima. O Arrais vem sobre o saco, soberano, calcando a pesca até ao «local» onde grita: - alto!; e aí, de navalhão em punho, corta-lhe o porfírio esventrando o «ajuntadouro da rede», deixando ver uma miríade de reflexos, provocados pelo sol a bater no peixe que saltita num derradeiro esforço para se libertar da prisão.
Num primeiro acto, homens e mulheres mergulham as nassas (os xalavares) na sacada, atirando «o peixe» para montes onde são separados por tipo, e depois, metido em cabazes de vime, para, de seguida, ser apregoado.


Enchendo os nassos

Mulherio, curiosos, pescadores e mercantéis, por razões diferentes, começam a «cobiçar» os quinhões, que logo ali são leiloados à voz do pregoeiro - do quem dá mais (?!) - sob o olhar atento do apontador do livro[1] que regista as vendas. Estes pregoeiros tinham com os «mercantéis» códigos estudados, sinais de licitação: - o piscar de olhos, o coçar a cabeça, o tirar do boné etc. - inacessíveis aos curiosos que só participam na licitação do «restolho».




O Guarda-Fiscal vigiando o apontamento das vendas

O peixe é então transportado em cabazes, nos enxalavares [1], carros de bois de duas rodas, muito largas, permitindo-lhes com mais facilidade se deslocarem na areia, conduzindo o peixe para os barcos dos «mercantéis» ou para os armazéns de salga, na beira-ria; ou para ser carregado por almocreves[2] que o irão levar, no mesmo dia, e nessa noite, percorrendo afadigados por entre vales e serras, os caminhos da Beira interior.




- O Peixe nos xalabares ,alinhadas para a venda



O burrico o rapaz e o almocreve

para o entregar, ainda fresco, «amanhã» para a venda. Outra parte do lanço segue para os gigos (cabazes) do peixeiro


O Peixeiro de Ílhavo


«ombreados» numa vara de cerca de dois metros que leva, enfiados nas suas pontas o par dos ditos «gigos», em que se carregam cerca de 50 kg de sardinha para ser vendida no mercado da Vila, ou de Aveiro.
As «pescadeiras», depois de darem uma mão na «safa» do peixe, escolhido


A Peixeira da Costa-Nova

este e logo ali loteado, enchem as suas canastras «atapetadas» por um oleado que evita o escorredoiro, e lá partem estugando o passo numa correria para apanhar a barca da passagem que as levará ao outro lado, à Maluca, de onde partirão ajoujadas ao peso do carrego. Que bem equilibrado sobre a rodilha ou sobre o chapéu de «penache», não necessita sequer de mão para o ajeitar ou segurar. Graciosas, descalças, mãos na cintura, seguem lestas em passo leve mas corrido, até que as primeiras casitas da vila aparecem lá ao longe; é então que da garganta fina, esbelta, orlada de belos cordões e libras d’oiro - seu único derriço! - sai o grito em voz sonora, clara e apelativa, no pregão: “Olha a sardinha da nossa costa! Freguesa!… venha «cumprar q’é do noisso mar”…. E assim vão calcorreando todas as ruas das redondezas até de noite, tempo de chegar a casa mortas de fadiga, mas ainda, com tempo, arte, e folguedo q.b., para fazer um «trauto» com «seu Arrais» no folhelho aconchegado onde se fez mulher… vai para um par de Invernos»…, (…que mulher «d’íbalho» não casa de verão!... não há tempo… nem homes em terra, para tal….)



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1- Moura,Frederico in «Ressonâncias»

[2] GOMES, Marques doc. XXIII in «Campeão das Províncias» - o custo deste transporte, da Companha para os armazéns de salga, era de conta da Companha, paga por fora ao pescador, valor guardado para a pinga “sem direito a que as mulheres o pudessem exigir”
[3] Os Almocreves funcionavam como uma verdadeira organização de transportes entre populações afastadas, especializados na comercialização à distância. Cada cidade ou vila de alguma importância tinha os seus Almocreves, e tinham-nos também, os reis e os senhores.
Grande parte do pescado salgado era levado por barca, da Costa-Nova para Águeda, entreposto de descarga e distribuição, de onde partia para toda a beira interior (Lamego, Viseu, Tondela). Pelo caminho iam suportando as sisas das portagens com que deparavam, impostas pelos forais (outras vezes esgueirando-se às mesmas), viajando em grupo (recova) para protecção contra intrusos. Era ao tempo um transporte rápido - o mais rápido - carregando por vezes para o Porto. Os almocreves podiam ser requisitados pela coroa, ou até pelos concelhos, por um número de dias estabelecido para transportar cargas de que aqueles teriam extrema necessidade. Documento de 15 de Março de 1448 onde é autorizada a entrada de sal de Aveiro, dado os perigos da sua vinda por mar. MORENO, Humberto in «A Acção dos Almocreves» Brasilia Editora Porto.

[4 E na presença obrigatória do Guarda-Fiscal que olhava pela recolha dos impostos
[5 Havia três pipos; dois no inicio das mangas, e um terceiro, o de maior capacidade na boca do saco.

Um comentário:

João Afonso disse...

Parabéns pelo excelente trabalho de recolha. Que as gerações vindouras reflitam sobre a vida dura dessa geração que já lá vai...