domingo, 29 de junho de 2008










200 Anos da Costa-Nova



(Fascículo 27)

15- ÍCONES DA COSTA-NOVA


15.1- JOSÉ BARRETO ou «LUIS DA BERNARDA»

Fundador da Costa-Nova e o seu verdadeiro Patriarca.
Fazia parte de uma família de pescadores, dos quais muitos migraram, litoral abaixo em procura de melhor pousio.
Ao tempo em que era Arrais da sua Companha encetou negociações com pescadores instalados em Lisboa, negociando na compra e venda de pescado.
Em Aveiro abre uma venda de aprestos navais.
O apelido Bernarda vem do lado de sua mãe, pescadeira, conhecida por Ti Bernarda «a Victória».
Infelizmente não existe uma única menção que relembre o seu nome como demiurgo do local.


15.2- ARRAIS ANÇÃ (1845-1930)

É Guilhermino Ramalheira que nos fala [1]desse herói - o arrais Ançã - que em Outubro de 1886 arranca trinta e uma vidas francesas, subtraídas às garras do “cão danado”- era assim que o arrais tratava o mar - feito que lhe mereceu a outorga da medalha de ouro concedida pelo Governo Francês, e outras duas - a de prata e a de ouro -, que ao Ançã foram atribuídas pelo Governo Português e que Lhe foram entregues pessoalmente por El-Rei D.Carlos, como recompensa de tantos e tão enormes feitos praticados por aquele «bravo». Que “à humanidade emprestou o mais brutal e formidável exemplo de demência heróica”[2]; de quem o mar nunca teria zombado.
Alto como um mastro de galera, carão moreno, tisnado pelo sol, encardido pela maresia, cinzelado de sulcos que a barba calafetava discretamente, sorriso doce e ingénuo como o de todas as crianças, de todos os heróis assim nos descreve o arrais, António Cértima.

- O arrais Ançã

Colega de carteira na escola primária de Alexandre da Conceição, este dedicava-lhe grande amizade, visitando-o frequentemente. Pretendeu,mesmo, levá-lo para remador do seu barco, quando o «poeta» foi Director do Porto da Figueira.
O arrais viria a falecer, pobre, em Ílhavo, a 23 de Fevereiro de 1930.
O seu busto foi, como referido, colocado no local do primeiro mercado da Costa-Nova ali ao lado da «Marisqueira».


15.3- ANTÓNIO GOMES DA BENTA

Em 18 de Setembro de 1876, este arrojado Arrais,em dia em que um espesso nevoeiro enegrecia o céu e impedia um barco com 35 tripulantes de varar na praia, quando um vagalhão caiu sobre ele, alagando-o e quebrando-lhe o cabo da barca, ficando sem leme, prestes a virar, eis que da assistência se destaca um homem que se atira ao mar levando consigo um cabo que é necessário prender ao arganéo. Luta gigante em que o Benta mergulha enlaçando-o; mas quando volta à superfície uma vaga atira-o contra o costado da embarcação. Três companheiros (O Naia, o Patacão e o Francisco da Cruz) atiram-se, eles também ao mar e amparam o António da Benta que salta para o barco e dirige a manobra até o varar na praia com toda a tripulação salva.
As honrarias são muitas: do Sr. Pinto Mesquita que lhe entrega 25$000 reis. A Associação de Instrução Popular de Coimbra que lhe atribuiu o titulo de sócio benemérito e de S.Alteza o Senhor D.Luiz que por decreto o condecora com uma medalha de ouro e tença anual.

Muitos outros arrais - «O Batata», «O Cajeira», «O Parracho», eram homens de respeito na borda do mar: valentes a defrontar o mar, afoitos em dominar os ventos, o braço forte, habituado a submeter ao seu poder varonil o arremesso das tempestades. O Mar obedecia-lhes …
E muitos… muitos outros, todos constituíram uma verdadeira plêia de homens de arrojada audácia a desafiarem o endemoninhado Atlântico…
Mas se a maior parte eram homens, também a Costa-Nova tem as suas figuras femininas. Umas em constante cirandar a dar braço à rede ou à soga dos bois; outras metidas até ao joelho na sacada, a atulhar os xalabares na separação do peixe.

Outras juntaram à presença o desempenho corajoso de tarefas onde ombrearam com a firmeza daqueles, no mourejo, na ausência de temor, no desembaraço do seu braço, como foi o caso da


15.4- JOANA CÀLÔA

…. que outorgou para si o epíteto de «ARRAISA».

Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de «arraisa» - ou governadora[3]- de terra, a quem eram remetidas as tarefas de orientação da Companha. Assim, era seu mister cuidar da reparação das redes,do barco e aprestos, encascar o redame, olhar pelo tratamento dos animais, gerir o pessoal, e prover dedicada e especial atenção a todas as tarefas concernentes à separação, venda e despacho do peixe capturado.
Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros, profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos quebreira, para o ir largando como mandavam as regras.
Naquele tempo havia o direito de primazia[4]: - o da escolha do campo de pesca, que era concedido ao primeiro barco que fosse para o mar. Joana - a arraisa - mais do que uma vez não hesitou, perante a demora do seu arrais, em desafiar três camaradas a embarcar com ela na robaleira e, levando a bandeira da Companha, colocar-se no local que ficava, assim, reservado para os barcos da sua Companha.Filha do António da Quinta (do Cons. Luís Magalhães, porventura?), era mãe de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente (Manuel da Barbeira, mais tarde conhecido por cap. Pisco, Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão, David - oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo - e D. Nazaré Marques). Todos eram, contudo, filhos de seu marido João Simões da Barbeira (O Pisco).





A «arraisa» Joana «CÀLÔA»


Mulher muito bonita e esmerada, era desempoeirada, muito mexida e ágil na lide, além de ser mulher de enorme ânimo e decisão.
Conta-se dela a seguinte história.
A Joana Càlôa ia usualmente levar o peixe branco a uma pensão a Aveiro. Debaixo dos Arcos postava-se, por vezes, um senhor bem vestido, de paletó, chapéu e bengala, a que não faltavam ares de alguma distinção. Sempre que a Joana passava com a sacola do peixe no regaço, o fidalgote não se escusava em dispensar um piropo atrevido à Joana. Que à primeira ouviu, o que pouco a importunou nem lhe deu crèto, pois mulher séria não tem ouvidos. Só que a cena repetiu-se, num escaramento atrevido, e era impossível à Càlôa fazer de conta que não ouvia o peralvilho, quinté parecia augado, e já começava a inquisilar. Por isso à terceira, parou, olhou o fidalgote de alto a baixo, desatou o lenço e foi-se à bolsa de onde tirou a navalha de estripar o porfírio[5]. E mostrando a lâmina afiadinha disse:
Crendas ver? Ó malino! Queras ficar com uma boca em baixo igual à de cima, só que ao alto, seu desbocado simprinhas? Queras frescura?... olha aqui vai -e agarrando na alcofa achapou o peixe para cima do mancatrufe, deixando-o a escorrer nhanha.
E a Joana lá foi à Pensão contar o sucedido de, nesse dia, não haver peixe.. Só que passados uns tempos, o patrão da Companha , o Sr. Cruz, grande amigo da família de Joana lhe veio dizer:
-Ah Joana!.., cachopa. Que fizestas tu ao Sr. Dr. Juiz, rapariga? Tu vais presa!...,pois atão não queiras lá ver que o pintiparado era oDr Juiz,raios…
- Ora… ora Ti Cruz: se é juiz que não achaque e falte ao respeito a quem passa.

E o certo é que não houve qualquer atitude do Juiz sobre a Joana, antes passou a olhá-la com o máximo respeito e educação.

Conta-se que durante uma ida a Lisboa numa representação da Companha, o rei D. Carlos teria reparado na esbelteza da Joana, e logo pretendeu que ela ficasse açafata do Príncipe D. Manuel.
Joana não mostrou grande interesse no convite, apesar da Rainha, ao que parece, ter prometido emprego ao marido da Joana, nos iates reais.
Mas era precisamente este quem insistia com a Joana para não ela não aceitar o cargo. E entre vários pedidos sempre lhe dizia:
- Não vás Joana. E ósdepois quem me faz o laço da gravata, mulher?!
Joana não foi. E assentou para sempre arraiais na Costa-Nova, onde fez palheiro. Que hoje ainda existe, pertença de uma sua bisneta, que o recuperou na sua cor ôcre, de origem



O Palheiro de Joana Càlôa (Bela-Vista)

De onde teria vindo a alcunha, que depois e seguidamente deu origem, como tantas outras, a nome de família, mantido de geração em geração? Não se sabe ao certo, mas não andará longe aquele que imaginar, possa, assim ter acontecido:


- Eh Toino…Simprinhas de um raio; mexe-te raios!… esperneia aí esse càlão[6] .
- Esperneava, esperneava se fosse uma «càlôa» em vez do «càlão», «ti Joana»…
- C’al-te home !…come auga e bebe areia p’ra matares a fome…engelhado…

E assim foi bautizada, a Joana, no corrume da vida de pescadeira da borda.

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1 Ramalheira,Guilhermino in «Arrais Ançã»

[2] Maia Alcoforado in Ílhavo Terra Maruja - Marujos da Terra dos «Ílhavos»

[3] Estender as alças do càlão.
[3] Os trabalhos das mulheres na Companha, eram vários, e alguns bem esforçados e penosos: juntar as redes, levá-las para o barco, empurrar com a muleta, escolher o peixe, etc.
[4] Dá-se conta que oficialmente o direito de primazia teria terminado em 1861. Contudo as Companhas instituíam, e respeitavam, a costumeira, e nem o próprio Arrais podia mexer nos hábitos, costumes e privilégios antigos, que assim se mantinham muitos anos para lá das posturas camarárias.
[5] Porfírio é o cabo que fechava a coada (saco da rede). Era ao arrais que competia esventrá-lo.
[6] Càlão - peça de madeira ligada às mangas da rede, com alça, onde se vão ligar o reçoeiro e ou
a mão da barca.




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