quinta-feira, 26 de junho de 2008





200 Anos da Costa-Nova

(capítulo 26)

14 - Acontecimento insólito: O « DESERTAS»

Em finais de 1916 a «aterragem» de um navio de apreciáveis dimensões (comp.112,4m, boca 12,7m e pontal 7,8m), com capacidade para embarcar nos seus porões 6.700 tons de carga geral, veio alvoroçar os que na praia se entregavam às diversas fainas, na borda; mesmo com a época balnear, acabada, desde logo o acontecimento, que ocupou primeiras páginas na comunicação social da época, faria atrair muitos curiosos, interessados pelo insólito, atraídos pelo mistério que se dizia envolver o navio, recentemente apresado pelo Estado português aos alemães, como despojo da primeira guerra mundial, a decorrer, e onde participávamos. O nome da embarcação foi então mudado de “Hochfeld” para “Desertas”.



O «Desertas» encalhado na praia

A saga do «Desertas» sob a bandeira portuguesa estava prestes a começar, pois o navio com o mau tempo, tinha vindo a descair sobre a praia por dificuldades de condições de navegabilidade, depois de se ter mantido ao largo de Leixões, tentando a entrada naquele Porto. E sempre a descair tinha vindo meter-se pelo areal dentro, evitando males piores à tripulação que saltou para terra, pondo-se a salvo.
O local do encalhe, situado a sul da Costa-Nova, distando cerca de meia milha do local das Companhas, de fácil acesso, permitiu desde logo encarar como viável o esforço para a sua recuperação, sendo para o efeito equacionadas diversas soluções, assumindo-se que a mesma seria levada a cabo pela companhia seguradora em acordo com o armador (inglês). Seria encargo do nosso país, apenas e só, o fornecimento de pessoal para a tarefa de salvamento, e para mais uma ou outra facilidade. Algumas (ténues) e pouco esforçadas tentativas de safar o navio, directamente para o mar, goraram-se, apesar de em determinada altura o mesmo ter flutuado, o que não foi aproveitado para se proceder ao seu reboque para o largo. O desinteresse dos ingleses, e o valor do navio em época pós-guerra, em que o aço era matéria rara e cara, levou o Governo Português a assumir o seu salvamento, usando para o efeito, técnicos e meios, nacionais. Abandonada a hipótese de saída directa para o mar, gizou-se um plano que consistia estabelecer um canal de ligação com a ria (que teria de ter uma dimensão de aprox. 1.000 metros, e uma largura não inferior a 30m), por onde o navio poderia alcançar a Barra de Aveiro.
E enquanto se protegia o navio do assédio do mar, numa costa muito






O «Desertas» a ser fustigado

exposta a esse factor, eram criadas condições para o endireitar, afim de lhe tapar alguns rombos e dar início aos trabalhos de dragagem na língua de areia, feitos com grande alvoroço pela draga «Mondego», requisitada para esse efeito. Todo este estendal de máquinas, material e pessoal, atrairia centenas de curiosos que vinham dar uma espreitadela ao decurso dos trabalhos, seguindo todos os passos e as peripécias dos mesmos, pois que estes prosseguiam dia e noite, feitos sem paragens, no intuito de não exceder o valor orçamentado para o custo dos mesmos: 115.000$00 (cento e quinze mil escudos) para a libertação do navio e 160.000$00 (cento e sessenta mil escudos) para as primeiras reparações. Perante a complexidade da tarefa, dava-se como provável o aparecimento de alguns trabalhos, não previsíveis à partida, para o que se orçou um valor para os mesmos: 22.000$00 (vinte e dois mil escudos). Pena foi que muitos imprevistos e a longa duração da operação tenham elevado para cerca de 700.000$00 (setecentos mil escudos!), os custos acima referidos.
Só iniciados em 3 de Julho de 1918 (quase dois anos após o encalhe) os trabalhos, já depois da embarcação ter suportado violento temporal que a danificou, o certo é que em 78 dias de trabalho o canal ficou apto para a segunda fase dos trabalhos, que consistia no embarque do «Desertas» no mesmo.


O Desertas a entrar no canal

Inesperadamente - ou não tanto - pois constava que tinham sido por diversas vezes avistados submarinos alemães, a pairar ao largo, o navio foi bombardeado do lado do mar. Para lá do estardalhaço da fuzilaria, logo foram postas a correr as mais diversas e desencontradas noticias, que incluíam a hipótese (que foi suportada ao longo dos anos) de o navio estar carregado nos seus porões com bombas de um tipo ainda secreto, que os alemães não desejariam deixar cair em mãos inimigas. O que era um perfeita especulação, pois o navio tinha sido descarregado e reparado, após aprisionamento, em Lisboa.




O«Desertas» na Bacia

A fuzilaria levou à debandada do pessoal e mesmo os veraneantes (estávamos na época alta) desataram num frenesim de fuga, pois que entretanto hidroaviões estacionados em S. Jacinto tinham levantado voo, e vindo atacar um outro submarino que fazia parte a matilha de submersíveis que pretendia destruir o «Desertas». Do mar as hipóteses de um submarino acertar no navio eram restritas, e muito mais quando acossado; à cautela e para defesa em caso de repetição da tentativa foi montada uma peça de artilharia na praia, no local dos trabalhos, que poderia ser muito eficaz na retaliação.Bateiras, barcas ou a estrada para a Barra, todos os meios e caminhos foram utilizados para fugir ao que se pensava poder redundar num ataque às populações estacionadas na Costa-Nova, como retaliação, conforme constava nos meios germanófilos.




O «Desertas» frente à Costa-Nova

Acalmada a situação e mesmo perante contrariedade de monta provocada por forte temporal, verificado em Setembro do referido ano, e que obrigou a novos trabalhos de recuperação na zona dragada, o certo é que em Novembro o navio foi acolhido na bacia dragada, onde tudo estava preparado para o reparar e preparar a sua estabilidade, para se iniciar a curta (dez a doze dias, previa-se) viagem até ao forte da Barra.
Constatado, entretanto - com algum espanto! - um erro na pré avaliação do calado, verificou-se que mesmo na melhor das hipóteses haveria que levar a cabo intervenções em diversos pontos da ria, especialmente em frente da Costa-Nova (onde se encontraram fundos de 0,90m, quando eram precisos cerca de 3,5m), para que o navio chegasse à barra.



O «Desertas» visto do «Arrais Ançã»

S
ó em frente da praia foi preciso dragar numa extensão de cerca de dois mil metros. Os dez a doze dias previstos para a curta viagem do Desertas até à Barra, transformaram-se em longos oito meses, para gáudio de mirones, fotógrafos, comunicação social e outros, que solicitados por um espectáculo parecido ao de um elefante metido em jaula, acorriam, conferindo um movimento desusado à praia, conferindo nome e notoriedade e ainda mais peculiaridade à que, já então, era motivo de exalte pelas belezas naturais da sua paisagem: natural e humana.
Ultrapassada a zona da praia em 5 de Outubro de 1919, foi só em fins de Janeiro de 1920 que o navio chegou à ponte, que tendo já sido cortada para dar passagem à draga «Mondego», foi de novo, em 20 de Janeiro do referido ano, interrompida, para dar lugar, agora, à passagem do navio. Que finalmente foi fundear em frente de S.Jacinto, e de onde levantou ferro, em 20 de Março de 1920, seguindo depois para Lisboa.






O «Desertas» finalmente fundeado em S. Jacinto





Terminara um episódio que iria ter muito importância para o desenvolvimento da Costa-Nova. Por um lado o longo período em que se desenvolveram os trabalhos trouxeram movimento e geraram riqueza nos botequins locais. Para lá dos que intervieram directamente nos trabalhos, juntaram-se ao corrupio, os curiosos que permanentemente acorreram, motivados pelo insólito dos trabalhos, e para admirar e registar um acontecimento histórico, irrepetível.
Mas se algumas contrariedades, acarretou o salvamento do navio - como foi, por exemplo, o depósito dos dragados - certo é que o «canal do Desertas», como se designou até à década de 70, foi o baú de riqueza de que se alimentaram gerações de pescadores da chincha, na ria. E por ele passaram, mesmo nas marés baixas, os «moliceiros» em demanda do norte para ao outro dia comparecerem à faina, a fim de não faltarem aos lavradores da borda com o húmus que alimentava e transformava as areias em verdadeiros campos de pão. E foi por ele, que mais prosaicamente navegaram centenas de embarcações de recreio, elegendo a Costa-Nova como um idílico local de lazer náutico, que fez acorrer gerações e gerações à ria, para, quaisquer que fossem as condições de maré, velejarem à vontade com os seus «Vougas» - feitos à sua medida! - em deambulações vadias.




2 comentários:

Unknown disse...

Muito obrigado!
É sempre com muito agrado que encontro novos contributos para o meu conhecimento da história da
região em que sou natural e residente.
Bem hajam as pessoas que se recusam a admitir que a cultura e história da sua região, sejam esquecidas!

reimar disse...

Boa tarde caríssimo amigo,

A primeira foto publicada neste post é do arrastão inglês "Regal", encalhado na Torreira, cujo casco apareceu recentemente, tendo essa ocorrência sido noticiada e comentada nos meios marítimos.
Muitos cumprimentos,
Reinaldo Delgado