sexta-feira, 20 de junho de 2008






200 Anos da Costa-Nova

(Fascículo23)

12.4- Urbano, Gentes e Natureza

Em meados do século passado, a Costa-Nova, debruçava-se ainda então sobre a ria, permitindo ao passante, gozar o espectáculo dos moliceiros que, ronceiros, penteavam a Ria na recolha do moliço em deambulação contínua, ali à vista de um olhar.
Certo é, porém, que a praia tinha já forma urbana esboçada, distribuída por espaços já completamente definidos em meados do novo século, com identidade e fins bem identificados.






As barcas na nova «Mota»

A norte instalavam-se as vendas (cafés, tascos, mercearias e de outras tralhas) e os palheiros, aqui e ali já transformados em casarões que a modernidade tinha consentido, embora que ainda nem sempre esteticamente valorativos da paisagem urbana.
A sul, a classe piscatória imune a influências exteriores continuava fechada em si mesma, como que enclausurada voluntariamente em gueto, vivendo numa rusticidade assumida. Que mais parecia esconjuro de desígnio superior, tanto era o seu suado, esfandegado e estrafegado labor, para sobreviver. Viviam praticamente alheados daquelas gentes da alta, amigas de luxar e pandegar, que doidejavam lá para as bandas do norte, e que apenas de quando em vez apareciam pela borda, a olhar, olhos espantados, o mourejo esgalmido que fazia escorrer o suor em borbotões pelas levadas esculpidas nos rostos mortificados dos pescadores, engolfados no ganho de uma parca, somítica e sofrida sobrevivência.
Mas era certo: para os comensais do sensório, o bodo era de monta. De manhãzinha já o barbazanas de fogo garimpava na serra, a espreitar por detrás da paisagem recortada de onde se destacava o Caramulinho. E logo a ria se inunda de um dourado afogueado a faiscar nas cintilações da mareta, que estremece como que estremunhada, acordada pelo sopro estival. O tempo monta, e com ele monta o astro rei para se ir empoleirar no meio-dia, de onde fuzila as águas, encharcando-as de um prateado ardente. A causticá-las de fogo, num ardego de que as próprias gaivotas fogem para encetar uma bordada lá pelos frescos do mar, para irem debicar no remoalho do lanço esquecido no areal, tanta era a pressa para acudir à sardinha, que urgia despachar. À medida que o dia se esvaía, o esverdeado tomava posse das águas, reflectindo um degradè que parecendo provir dos pinheirais, se esbatia por entre os milheirais, até se esparramar pelas águas da ria.
Apreciar à noitinha a paleta da Costa-Nova era (e é!) mergulhar numa orgia incomparável: - o vermelhão do pôr-do-sol a se afundar lá no horizonte envolve toda a praia e tinge as areias que à borda vão receber as queixas do mar; ou escorre nas ondulações da lomba, encharcando-as de sombras e brilhos. É altura para lá de longe, emergindo do escuro serrano, se soltar a lua para verter um prateado maravilhoso sobre a superfície serena, quase vidrada, da ria. Que parece pronta para o sono, a mirar-se ao espelho antes de se ameigar na almofada da neblina que, rasteira, lhe vem servir de conforto ao codorno. A luz inunda o malhadal da Maluca onde se destaca, na outra banda, a horda de maçaricos noctívagos que debicam, sossegados mas irrequietos, à procura de uma «pulgão do mar» por entre montículos de sargaços acamados, prontos para se escarrapacharem na padiola do semeador, à espera de irem engordar as areias laças, dando-lhes força para gerarem vida.
E é então que o colimbo mergulhão aproveita para se banhar na ria de prata, ondulando-a, realçando o seu prateado exuberante, que refulge, cintilante.


12.5- Destruição da Esplanada;Terraplanagem da ria

E foi então, em 1972, que a J.A.P.A. em acordo com a Câmara Municipal de Ílhavo, provocou uma intervenção profunda e radical, e pouco justificada, irracional ao retirar a marginal de defronte aos Palheiros, destruindo de uma só vez, e para sempre, a esplanada, o altar onde gerações tinham pingado de amor e promessas, nos enlevos do período estival.
Era ali, que às vinte e uma horas, anunciadas na Rádio Faneca, depois de jantar, toda a juventude fazia caminho e carreira, em grupo, deambulando entre o norte e o sul, de um ponto ao outro da esplanada; por ela ou pela estrada que lhe era contígua, passeava um mundo de gente descontraído, para encontro e conversa.
Havia quem optasse por ir ao Pardal buscar amendoins; ou à Srª Emilinha, umas línguas de gato, para, sentados sobre a amurada da esplanada, por ali ficarem a ouvir as músicas da moda: - as simones, os calvários, os mários simões, os tony de matos e a coqueluche da época - o shegundo galarza - a fazer hora até que o Rádio Faneca anunciava, às onze, a despedida. Era hora de acompanhar a eleita a casa. Depois vinha-se novamente para a Esplanada, e por aí ficava a rapaziada até um pouco mais tarde. Nos palheiros da marginal os terraços ficavam cheios de senhoras que enquanto esperavam as filhas iam tagarelando, ou dando à agulha a tricotar mais uma piolheira[1], não perdendo a ocasião de pôr o olho para os pretendentes que borboleteavam em torno das «suas» rainhas.






O areal que destruiu a Esplanada[1]

A Costa-Nova pareceu ferida de morte com essa intervenção. Na altura - e talvez ainda hoje - pouco compreensível, parecendo inútil quantos aos fins a que se propunha, e até despropositada. Foi criada uma larga zona de areal, afastando as águas da ria cerca de uma boa centena de metros para nascente, com o intuito - dizia-se - de corrigir as margens. Depois de ensacado o areal, perante o desconsolo de um modo universalmente expresso, várias soluções foram alvitradas para implantar um espelho de água naquele inestético areal. Não passariam de promessas, mantendo-se praticamente um areal abandonado, durante largo tempo. A Costa-Nova perdia assim um dos seus mais belos atractivos: e pareceu, então, que a praia não teria futuro.
As muitas embarcações de recreio que habitualmente fundeavam no Bico, ou até em frente da Esplanada, deixaram de ter varadouro, desaparecendo quase que na totalidade, pois nem sequer houve o cuidado de arranjar fundeadouro alternativo.
A Biarritz acabou, com a invasão do areal pelas águas da ria, deixando de ter condições para receber os banhistas.O que salvou a Costa-Nova da imediata exploração imobiliária, com a consequente destruição da sua imagem de marca, única no litoral português, terá sido a existência dos palheiros anteriormente sitos em frente da ria, no local mais nobre do agregado urbano, que por exuberantes no cromismo das suas riscas, começaram a despertar a atenção pela singularidade do seu visual, levarando à manutenção das suas formas, no geral. O arquitecto urbanista de então, Samuel Quininha repeliu todas as audácias de os descaracterizar, protegendo e até recuperando os tiques vindo do passado. E em madeira ou já imitando as riscas broxadas sobre alvenaria - do mal o menos! - a Costa-Nova reforça o estatuto singular, pela visibilidade e referência alcançados pela preservação do seu património histórico, os risquinhas, verdes, amarelos, vermelhos e azuis, que passam a merecer especial e carinhoso cuidado por parte dos que se assumiram seus guardadores, e por aqueles que os começaram a descobrir como ponto de visita obrigatório, a incluir nos roteiros turísticos.

Costa Nova meados séc.

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1 -Foto cedida A.M.L













[1] Piolheiras eram camisolas de lã grossa, muito adaptadas para vestir em dias de vento, e que vulgarmente eram utilizadas pelos pescadores na faina.

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