segunda-feira, 16 de junho de 2008






200 Anos da Costa-Nova

(Fascículo 21)


11.7- Os bailes da Assembleia

Chegado o fim de tarde, cansados do dia de bulício, recolhiam-se os veraneantes ao refastelo da ceia. Antes do repasto fumegante se alcandorar às mesas dos comensais, era ainda momento para, às portas dos palheiros, se entreterem com uma última bisca lambida.
Findo o refastelo, aperaltados, de camisa atada com gravata de seda sob casaquinho cingido a acentuar a ombreadura de atletas, sapatinho caiado amparando a calça janota afunilada, o palhinas pousado no cimo da cabeça cobrindo um cabelo bem untado, era já tempo de acorrer à Assembleia. A um canto o piano aguardava, parecendo ansioso, pela jazz-band do João Pretinho para acompanhar a voz roufenha vinda de uma garganta arranhada, terminada por uma dentuça alva a sobressair no contraste com a tez escura, que parecia querer dar o fora quando o João saltava, frenético e funambulesco ao ritmo convulsivo dos sons provindos do instrumental. Toda aquela juventude entrava a rodopiar de um modo agitado e gralheiro, ao compasso dos acordes que cruzavam o ar do salão. Muitos outros grupos de baile animavam os bailaricos; o «Cartola», o «Ilhavense Jazz-Band», o «Rádio Jazz», eram os assíduos animadores das noitadas trepidantes, vertendo enxurradas sonoras provindas dos estridulantes metais. Uma ou outra vez, em noites mais calmosas, o trinado dolente do fado substituía o frenesim musical da dança, e até, em uma ou outra noite, elegia-se a poesia romântica da época, declamando-a com ardor, ênfase, olhares e gestos adequados à pretensão de despertar os mais comovidos e ardentes enlevos, no intuito de facilitar a circulação dos fluidos amorosos.
As raparigas tinham já atirado às malvas os trajos de tricana; agora, o fatinho caído, cingido, desenhavam-lhes já as formas; a perna esbelta, gentil, e bem torneadinha, aparecia ao léu, antes do pézinho delicado calçar os sapatinhos de meio salto, abotoados no artelho, indispensáveis para melhor escorregarem, levezinhas, nos doces e lascivos shmmy’s ou nos ardentes one-steps, ou saltitarem nos mexidos charleston’s. Sempre indispensáveis, fosse para cirandarem ao som dos cálidos e palpitantes maxixes, fosse para se entregarem aos compassos boémios dos foxtrots. Todas bailações que integravam o cardápio das danças em moda, em namoros a que só por irrisão se poderia chamar flirt, se ignorado o que há de espiritual e gracioso no jogo de amor platónico[2].
Entre danças, conversas, namoricos, olhares dirigidos, fugidios ou penetrantes, entrecortados por suspiros murmurados em sussurro proveniente de almas apaixonadas, alinhavam-se concursos poéticos e de traje, récitas, fados, jogos das prendas e das navalhinhas, tudo servindo de entretém a uma juventude a despertar, maravilhada, para a vida.


11.8- Pick-nicks

Era vulgar organizarem-se pick-nicks, um dos mais habituais e mais desejados acontecimentos da época estival, sempre esperados com grande ansiedade a data dos mesmos, pelos grupos em veraneio. Fretado um saleiro, lá embarcava o grupo do folguedo, saindo logo de manhã, levando com ele uma qualquer jazz-band, desde que estridente, rechinchante e zunidora. Iam carregados com as cestadas que o esmero das meninas tinha preparado, em grande mas secreto alvoroço, qual delas mais se aprimorando em fazer gala em desensacar as melhores vitualhas na apresentação dos melhores e mais apetitosos petiscos, em cuja feitura, as mães, tinham, afadigadamente e cheias de brio, colaborado, dando-lhe o toque aprimorado da experiência. Uma boa cestada era meio caminho andado para insinuar os dotes de boa dona de casa junto dos putativos candidatos e factor que muito podia influenciar o potencial interessado, a declarar-se, sem mais espera.
O passeio era feito para a outra banda, para um terrado situado junto da igreja Matriz da Maluca, um bom local para o aprazado bailarico, ponto alto do programa; ou então para mais longe, ali à Senhora das Areias. Ao fim do dia, os jucundos grupos eram esperados pelos familiares; e todos, em verdadeiro farrancho, percorriam a praia acompanhados pela banda estrídula, recebidos com esfusiante alegria ao longo da marginal com as varandas dos palheiros engalanadas, criando uma onda festiva que animava e envolvia toda aquela gente, em alegre galhofa. Á noite, na Assembleia, não faltava o bailarico para encerramento do dia, terminando só madrugada alta a farrambamba.


11.9- Chinchada

Outro dia assinalado na época balneária, era o da chinchada. Promoviam-se chinchadas com frequência. Mas uma vez por ano realizava-se a chinchada monumental, quase sempre em meados de Agosto.






Chinchada Monumental

Constituído o grupo que vestia por um dia a pele dum pescador da borda assumindo a preceito o papel, a parecer de conta que praticavam a arte da chincha; contratava-se um arrais da arte e lá iam todos embarcados nos chinchorros; logo que dado o lanço a tripulação varava a bateira, e saltando em terra, entregava-se ao alar das redes, deixando descair a manga a montante sobre a outra, até ao levantar do saco com o peixe capturado. Em outras embarcações eram transportadas as meninas que lestas se mostravam prontas para dar uma ajuda ao erguer as mangas para impedir o peixe de fugir; ou ainda, atentas ao servir os esforçados pescadores de um gole de bebida adequada para atenuar o esforço excepcional do dia, acompanhado de algo sólido para aconchegar os estômagos mais engelhados.





Chincha e Moliceiros

Finda a maré, enodoados do vinho, empanturrados com as talhadas de melancia, pintalgados de areia lodosa, percorria-se a praia mergulhando-a numa alegria esfusiante, quase se atingindo uma orgia colectiva, com os sons provenientes da banda contratada para o efeito, a obrigarem os corpos à dança, a chocarem-se na boémia.
Encarnadas, rubras e escaldantes, eram as horas em que os corações dos dois sexos se fundem no rubro cadinho do delírio, a embriagarem-se mutuamente no absinto da dança, no ópio dos olhares, na electricidade dos corpos, assim descrevia Saguncho em «O Ilhavense» de 16/08/1925, o fim de uma dessas chinchadas.
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[1] Em baixo da direita para a esquerda: Quim Teles, José Cete; Em cima: Otelo, Carlos Teles e Batista
[2] «Saguncho» in «O Ilhavense» de 08/09/1929

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